Artigo de "A Bola" com entrevista a Cosme Damião, 1945


3 de Março de 1945. O recém fundado jornal "A Bola" (Janeiro desse mesmo ano), publica uma das suas mais importantes edições de sempre. Porquê? Porque nela consta um artigo acerca do Sport Lisboa e Benfica, por ocasião do seu recente 41º aniversário, que inclui nem mais nem menos do que uma generosa entrevista com o fundador, o Pai do Glorioso, o SR. COSME DAMIÃO, já numa fase da vida em que o físico o deixava ficar mal mas o intelecto se mantinha intacto.
Tomei conhecimento desta entrevista através de um referência e citações no livro "História do Futebol em Lisboa" de Marina Tavares Dias.
Ora acontece que o referido jornal nos facultou uma cópia desse artigo cuja autoria é de Mário Oliveira. Desde já o nosso eterno obrigado. É um verdadeiro pedaço de história! 
Foi com emoção que li e reli a entrevista do Sr. Cosme Damião e é com um profundo orgulho que a transcrevemos aqui para o blog, para que, tal como nós, num verdadeiro acto de Serviço Público Benfiquista, todos possam ser transportados para a primeira metade do século XX e consigam dar vida à figura mítica e lendária do nosso fundador.



O SPORT LISBOA E BENFICA COMPLETOU 
41 ANOS DE EXISTÊNCIA 

UM CLUBE 


"O Benfica - é o Benfica. Hoje e sempre! O mais potente, a mais sólida, a mais resistente organização desportiva nacional. E não são os seus feitos brilhantíssimos, ou a sua vasta acção social e desportiva, ou a sua extensa massa associativa, ou os seus atletas, ou os seus campeões, ou as suas taças, ou os seus haveres que contribuem para fazer dele o primeiro dos nossos clubes. Não. Acima de tudo, e como soma, consequência ou determinante de tudo isso ele impõe-se, vale e projecta-se no mundo desportivo português como o mais denso e sólido agregado social, insensível à defecção, refractário à intromissão, insubmisso à vicissitude  de modo a engrandecer-se cada vez mais através dos seus 41 anos de existência, e que ora se comemoram. O que há, na verdade, demais notável e impressionante, de permanente e eterno, de inconfundível e insuperável no Benfica é o espírito de clube que empresta à colectividade, aos seus sócios, às suas manifestações aspectos gritantes do labutar duma família totalmente iluminada ou deslumbrada por verdadeiro espírito de sacrifício e de amor clubista.
A unidade e integridade da massa do Benfica, é a sua maior força e dá ao clube relevo especial, que se projecta nos feitos desportivos como nas realizações clubistas: Na vitória e na derrota, na alegria e na tristeza, na luta e na paz desportivas.
O espírito do clube é afinal a alma do Benfica, rubra, vibrante e altiva, cem por cento SLB - um por todos e todos por um!
É a passagem do 41º aniversário da fundação do Sport Lisboa - Primeira fase do Benfica - É esse "espírito", essa "alma" que dinamiza e imortaliza toda a sua acção social e desportiva que a "bola" saúda e deseja, se possível, ver ainda mais alta, mais forte, e cada vez mais útil ao clube - e ao desporto nacional.



COSME DAMIÃO a maior figura do clube conta aos leitores de "A Bola" alguns episódios da história do Benfica



A missão do jornalista é por vezes ingrata. Quando na Quinta-feira à noite, nos falaram em entrevistar Cosme Damião, para o nosso jornal, pensámos fugir ao encargo. Cosme Damião é ainda uma das figuras mais representativas do Benfica, do Sport Lisboa e Benfica, no seu passado. Ninguém melhor do que ele conhece a história do clube, desde os primeiros treinos, em Belém. Mas sabíamo-lo doente, em casa, há tempo.
Esta entrevista não tem por isso o ambiente buliçoso de um café, nem o ambiente grave ou garrido de um gabinete de trabalho. Tem o recolhimento de um quarto de doente, onde há aliás a nota agradável do gosto artístico do mobiliário em estilo antigo. O Cosme que levávamos na memória, o Cosme dos campos de futebol, o Cosme calmo que fez com entusiasmo o Benfica passar à categoria de grande clube, o Cosme empreendedor da obra grandiosa que foi o Estádio das Amoreiras, não é o mesmo que encontrámos no leito doente. Conserva no entanto, a mesma distinção de maneiras. Mantém, integro, o entusiasmo pelas coisas de desporto. O Benfica vive, ainda, na sua sensibilidade. Não diminuiu a sua afeição pelos companheiros do clube e do desporto. E a sua memória surpreende. É prodigiosa. A história do Benfica é ele mesmo. Consultá-lo, é como que consultar um repositório de datas e de factos.
Acolhe-nos com a amizade de largos anos de trabalho em conjunto, num antigo jornal desportivo – no «Sport de Lisboa». E é com gentileza que escuta atentamente o fim que nos levou a sua casa, esclarecer dois pontos nebulosos na história do Sport Lisboa e Benfica, em comemoração de um novo aniversário: a condição em que se fundou o clube, e o motivo certo da saída de jogadores, para o Sporting em 1907.

Como surgiu a ideia de um clube

Cosme Damião não altera o ritmo da conversa para dar uma resposta concreta:
- «Espera um momento. Deixa recordar os factos. Não apontes nada, por enquanto. E tu depois extrais da narração o que for necessário para dar sequência ao pensamento.
«Certamente com a intenção de nos deixar mais à vontade, acrescenta:
Não é preciso recordar muito. A memória funciona bem felizmente. Estou a falar contigo e parece que estou vendo as pessoas, os campos, os pontos de reunião. Parece-me que estou vendo tudo. Ora nota».
E vem a primeira síntese:
- «A ideia de formar o Sport Lisboa não resultou do propósito de constituir um clube em determinadas condições. No nosso bairro, na escola, na corporação a que se pertencia, surgia, de quando em quando, a ideia de um clube. Se fizéssemos um clube nestes moldes? – era pergunta que não se tomaria como impertinente, numa altura em que ainda não havia grandes clubes. Mas não se sucedeu isso com o Sport Lisboa, foi o contrário. Constituído um «team» para jogar com outro mais forte, o bom resultado de um desafio, fazendo reunir numa pequena festa de alegria os jogadores vitoriosos, levou-os a pensar em dar consistência ao «team», transformando-o em clube. Veio primeiro a ideia do jogo, pelo prazer de jogar. A ideia do clube seguiu-se ao prazer do triunfo. Houve desde logo a certeza de que pela união nos podíamos tornar mais fortes. Neste sentimento inicial se pedia a escolha da divisa do novo clube – um por todos, todos por um»
Feita esta legenda, que pode ficar para a história do clube, interpôs-se uma pausa, para ordenação dos factos. O Cosme, com a serenidade habitual, procura, depois, justificar a afirmação. E vem tudo, com lógica e sem pressas
- «Deixa lá ver…
E ele foi vendo à medida que revia.
- «Chegámos a este «team» ou grupo em condições curiosas e por vias diferentes.

O grupo dos Catataus


- Em Belém, formara-se, muito antes,  um destes grupinhos de bairro. Os rapazes de algumas das melhores famílias daquela zona reuniam-se para jogar futebol. E residia quási tudo, no mesmo prédio, na rua Direita de Belém, onde estava e está a Farmácia Franco. Os jogadores mais em evidência eram os irmãos «Catataus» - José, António, Candido e Jorge Rosa Rodrigues. Jogavam, com eles, os Carrilhos, seus vizinhos, e os Monteiros, moradores na mesma rua. A própria farmácia contribuiu com entusiasmo para o núcleo de jogadores - Manuel Goularde e Daniel de Brito, empregados da farmácia, os donos, Pedro Franco e Conde do Restelo, e um médico que ali dava consultas - o dr. António de Azevedo Meireles. Uns jogavam. Os outros ajudavam os rapazes. O grupo dos «Catataus», em organização, teve diferentes títulos, conforme as necessidades de momento.
-«Este grupo disputava desafios com os «teams» que apareciam, tanto de Escolas - havia perto o Colégio Arriaga - como de clubes. Este grupo dos «Catataus» foi um dos núcleos  que deu depois jogadores para o desafio que provocou a fundação do Sport Lisboa.

A Associação do Bem

«O outro núcelo era o de jogadores que se fizream na Casa Pia. Eu saí, em Agosto de 1902. Em Julho de 1903, fundou-se a Associação do Bem, constituída por ex-alunos da Casa-Pia. Havia o propósito de dar aquela associação, características tão amplas que permitissem a prática dos desportos. Apareciam muitos ex-alunos, pela seda, em segundo andar da Rua de Serpa Pinto, com janelas para o Chiado.
«O desporto contava bastantes simpatias, na Associação do Bem. Para o futebol ia, porém, o maior entusiasmo. Pensou-se, assim, na formação de um «team» de futebol. Eu era muito novo, mas pertencia ao grupo dos que aceitaram o projecto com mais alegria.

«Pensou-se, desde o princípio, nos jogadores que deram à Casa Pia, a vitória estrondosa de 1987, contra os ingleses do Carcavelos Clube. Quási todos eles estavam dispostos a voltar ao jogo. E todos tinham ganho muito presrtígio.
«Veio o primeiro treino, realizado num domingo, compareceream talvez uns 24 jogadores. Formaram-se dois grupos e não houve lugar para todos... Ao segundo treino, no domingo imediato, marcado, como todos, para o Hipódromo, compareceream apenas 18 ou 19. Já não foi possível arranjar dois «teams»... No terceiro domingo, o número desceu para 12 ou 13.
Quando os treinos findaram, os que podiam reuniam-se em almoço, na casa do António das Caldeiradas, à esquina do Largo de Belém.
Os teinos, os almoçoes, tudo isto se foi tronando conhecido a pouco e pouco, em Belém. E começou a aparecer gente a ver os nossos treinos. Foi num dos domingos do Hipódromo que se travou conhecimento com o José Trabucho, antigo mestre do hiate real, e que acompanhava o grupo dos rapazes de Belém. E foi ali também que conhecemos um outro rapaz.
 
Manuel Goularde

Há, aqui, uma pausa do Cosme. E vem um comentário, para o jornalista:
«- Tu não calculas o que era a figura desse rapaz. Estou-o vendo: aparecia sempre equipado, por completo - da cebça aos pés... Kepi preto, camisa branca, calção preto, meias de futebol e botas também de futebol. Mas o que dava mais nas vistas era uma grande faixa sobre a camisa, a tiracolo, com as três cores da bandeira francesa. Não soubemos a princípio o seu nome. Começou a aparecer talvez no terceiro treino. Não jogava. Dava apenas uns pontapés...

Era o Manuel Goularde, o empregado da Farmácia Franco.
Manuel Goularde conhecia muito bem as leis do jogo. Tomou para nós, o papel de técnico - do futebol. Passou a acamaradar francamente com os jogadores da Associação do Bem. E falavamos dele com simpatia, nos locais onde nos reuiniamos, geralmente numa farmácia do Conde Barão, também frequentada por sócios do Clube Naval, de Lisboa.
Mas continuavam a gostar do futebol.
Manuel Goularde foi, mais tarde, quando nos faltavam jogadores, o ponto de ligação do grupo dos «Catataus». Por essa altura tinham regressado da Inglaterra Fernando e Eduardo Luiz Pinto Basto, que brilharam, mais tarde, no Internacional. Com o regresso deles, reforçou-se o grupo que era então conhecido pelo grupo dos Pinto Bastos- Voltaram também a Lisboa após uma estada em África, Carlos Vilar e Joaquim Costa, ambos oficiais de marinha, o último já falecido. Foi um bom reforço. E o grupo dos Pinto Bastos ganhou fama.
 
O Sport Lisboa

O Manuel Goularde pensou que nós podíamos defrontar aquele grupo se incluíssemos no «team» jogadores do grupo dos «Catataus», ao tempo designado por grupo de Futebol Lisbonense, ou título semelhante. Fizemos assim, um misto entre a Associação do Bem e o Lisbonense. Julgo que perdemos o primeiro desafio, por 0-1. Mas ganhámos o segundo por 1-0. Os dois desafios foram disputados nas Salésias, talvez em Dezembro de 1903.
Houve festa rija numa cervejaria em frente da Farmácia Franco, para celebrar a vitória. E partiu da referida festa a ideia de nos reunirmos em clube.
Esta ideia discutimo-la depois. Hesitámos no título. Sport Lisbonense de Lisboa. Sport Lisboa. E optámos, no fim, pela última designação. Ficaram especialmente connosco o Goularde, o Daniel de Brito e os quatro irmãos Rosa Rodrigues.
Nasceu, assim, o Sport Lisboa.


Os primeiros tempos do clube

«A primeira manifestação da actividade do novo clube foi o treino marcado para 28 de Fevereiro de 1904. Para a compra da bola, fizemos um empréstimo de 4.500 réis. o respectivo documento constava do arquivo do clube. O treino fez-se em Belém, no antigo terreno das Salésias.
As dificuldades eram, porém, grandes, visto que era um terreno público. Não havia local que servisse para mudar de roupa, ou de balneário. Para o equipamento, pagava-se alguma coisa a um casal de velhos, no topo de poente. E a lavagem fazia-se ao ar livre, em alguidares de barro. A água era de um poço próximo. Havia um moço que se encarregava especialmente de tirar a água, e despejar algumas vezes baldes de água por cima dos jogadores. Outros jogadores vestiam-se logo que o desafio ou treino findava, para se lavarem à vontade nos outros clubes a que pertenciam, no Clube naval ou no Gimnásio.
Não houve eleições, para a primeira direcção. Foi eleita - por acordo, entre os jogadores. Como Presidente, ficou o dr. Januário Barreto, que veio a falecer muito novo. Para os lugares de secretário e tesoureiro, escolheram-se, respectivamente, Manuel Goularde e Daniel de Brito. E como estes directores eram empregados da Farmácia Franco, ali funcionou a primeira sede do Sport Lisboa.
Em determinada altura, fomos corridos das Salésias. Uma ordem do Ministério da Guerra interditou o terreno para a prática do futebol. Passámos então a treinar nos terrenos da Companhia dos Caminhos de Ferro, em Belém, por vezes atrás do antigo jardim. Tivemos de alugar casa. E essa necessidade serviu para se criar mais tarde, uma sucursal do clube, naquele bairro»
O Cosme interrompe a conversa para fumar um cigarro. É boa esta paragem para descanso. E nós aproveitamo-la para dizermos: - Bem. Está já esclarecido o primeiro ponto que me trouxe a tua casa. Quando puderes, vamos ao segundo: Como se deu a saída de jogadores para o Sporting?
Cosme responde:
- «Está bem. A questão não é de facto complicada. Resultou de um problema que se pôs ao clube logo que nos correram das Salésias.

Um clube e vários jogadores à procura de campo

«A necessidade de um campo de jogos surgiu cedo, no Sport Lisboa. E não foi descurado. Faltou apenas dinheiro para o resolver. Pensámos, primeiro no actual campo do Belenenses. Tentámos, depois, um campo que corresponde um pouco ao seu terreno de treino, com entrada pela Rua da Junqueira. Eram terrenos de qualquer corporação religiosa e não houve maneira de remover as dificuldades que se levantaram. A nossa preocupação era ficar em Belém ou perto.
A procurar solução adequada, lançámos depois as vistas para um campo no Arco do Cego. O dono, um senhor de nome Amorim, quis fazer bom negócio e pediu 200.000 réis de renda por mês. Oferecemos o que se nos afigurou compatível, para as disponibilidades do clube. Mas não se chegou a acordo. Desistimos, por isso.
Desistimos, é como quem diz, desistiu o clube. Os jogadores é que não. O Sport Lisboa tinha uma primeira categoria com jogadores de elevada posição social. O Januário Barreto estava médico. O Couto, arquitecto. Franscisco Santos, que regressara de Paris e José Neto, eram escultores. Pedro Guedes começava a firmar o seu nome como pintor. O Silvestre José da Silva era professor na Casa Pia. Daniel Queiroz dos Santos estava bem empregado. Emílio de Carvalho criara fama como gravador. Os dois Rosa Rodrigues (António e Candido) estavam bem relacionados. Alguns já não estavam nos vinte anos... Não lhes agradava, por isso, andar com equipamentos e balneários ao ar livre, sem comodidade nenhuma. Já não tinham idade, nem posição social para rapaziadas.

A saída para o Sporting

A dar força às suas observações, a tornar mais imperiosa a necessidade de campo, havia o exemplo do Campo Grande, transformado, pela força de vontade de José Holtreman Roquete (Alvalade), no Sporting Clube de Portugal, com campo e instalações decentes. O exemplo começou a tentar... Não se podia fazer nada sem campo.
Houve troca de impressões entre os jogadores. E chegou-se  a uma conclusão desoladora, não havia campo e não se podia passar sem ele. Resolveu-se, por acordo, que cada qual procurasse a solução que mais lhe agradasse ou a que melhor se pudesse adoptar. Um, quási todos os jogadores da primeira categoria, foram para o Sporting, permitindo a José Machado a realização do seu sonho de um grande clube. Com aquele reforço, o Sporting organizou o seu primeiro «team» da categoria superior...
Dos outros, uns juntaram-se ao Académico, de onde era figura saliente Vergílio Bentes, feito jogador na Casa Pia. Alguns fizeram-se sócios do Sport Clube Benfica, que também tinha campo, em Benfica. Surgiu entretanto a ideia de resistência. Marcolino Bragança, jogador esplêndido, talvez por aspirar justamente a alinhar em primeiras categorias, pôs este problema - porque não passamos o segundo «team» a primeiro? Concordaram alguns. Eu, por mim, concordei. Marcolino Bragança foi a «alma» da resistência. Perdeu o ano no Liceu. Mas ganhámos todos - com a continuação do clube.
A impressão no meio desportivo da época era de que o Sport Lisboa morrera. Quando se fez uma reunião na Liga Naval, para inscrição do clube, foi com surpresa que se viu José Silvestre da Silva, como representante do Sport Lisboa, a assegurar a inscrição do clube.
O Sport Lisboa não sucumbiu. Um dos elementos que saiu para o Sporting, o Henrique Costa, voltou, um ano depois, não obstante ser presenteado com um relógio de ouro, como jogador mais correcto em toda a época. Voltaram outros. Mas voltou, sobretudo, o entusiasmo dos primeiros tempos. E o Sport Lisboa manteve-se. E está aí grandioso, cada vez mais forte.

Um campo salvo por duas «sopeirinhas»

Nesta altura somos nós que interrompemos o fio das recordações do Cosme. A esposa enfermeira dedicadissíma do seu marido, chamara já a sua atenção para a hora de qualquer medicamento. Desculpa Cosme, dizemos nós. Estava gostando de te ouvir e penso que te agradava a recordação do teu passado desportivo. Mas não quero maçar-te.
- «Não, não me maças. A recordação agrada-me ao meu espirito», responde.
-Então, só uma pergunta, para fechar a entrevista: há algum episódio  de dedicação relacionado com a continuação do clube?
O Cosme hesita um pouco, mas volta com pretexto:
- «Aí vão dois, à falta de um... E um deles liga-se com a acção desenvolvida no clube pelo actual sócio nº 2 - Luiz Carlos de Faria Leal.
O caso passou-se depois de estarmos em Benfica, após a nossa fusão com o Sport Clube Benfica para onde passámos com cerca de 50 sócios. O campo custava-nos 45.000 reis de aluguer por mês. E não havia dinheiro que chegasse. Que se há-de fazer? perguntavamos uns aos outros, num grupo de sócios com mais responsabilidade. O Faria Leal deu a resposta. Agarrou em duas «sopeirinhas», títulos que valiam 22.500, naquela altura. Agarrou neles. Foi vendê-los. E trouxe-nos integralmente os 45.000 da venda! Estava salva a situação!
A evocação da falta de pagamentos faz-me lembrar uma outra situação difícil, certamente a mais penosa que o clube atravessou. Estávamos também em Benfica, alguns anos mais tarde, na Avenida Gomes pereira. Houve quem deixasse propositadamente de pagar água, luz e não sei que mais. Mas igualmente houve quem nos avisasse do que se passava. E pagou-se tudo. O clube voltou a salvar-se. Este caso é, porém, mais complicado. Talvez merecesse a pena contá-lo com vagar».
Às vezes, são os entrevistados que se calam, a despedir jornalistas. Um silêncio destes chega a ser significativo... Desta vez, dá-se o contrário. É o jornalista que tem de impôr o descanso ao entrevistado. A conversa era atraente. Mas não tínhamos o direito de abusar da hospitalidade com que o Cosme, o «velho» Cosme do Benfica, nos recebera. E a nossa demora fazia retardar o tratamento.
Agradecemo-lhes a forma como nos atendeu. Mas cumpre-nos agradecer também à sua esposa e filha a gentileza com que nos permitiram conversar largamente com Cosme Damião. Para todos, vão os nossos desejos de melhoras.



Imagens complementares e respectivos textos:



artístico bronze, que um entusiasta do Benfica, Bernardino Costa - que tinha uma loja de bric-á-brac em Belém e era pai de um jogador desse tempo, António Costa, vulgo o Tótinhas - ofereceu ao clube para comemorar a vitória (1-0) alcançada sobre o famoso grupo de Carcavelos, formado por funcionários ingleses do Cabo Submarino, no dia 19 de Fevereiro de 1911. 
Era a segunda vitória obtida pelo clube sobre os ingleses. 
A primeira, quando o clube era ainda o Sport Lisboa fora alcançada em 10 de Fevereiro de 1907. Os ingleses perderam nessa altura por 2-1. 
Este "bronze" é o troféu mais antigo existente na Sala das Taças do Benfica, visto terem desaparecido os primeiros prémios ganhos por grupos do clube - dois objectos de arte (estatuetas) oferecidas pelo Clube Internacional de Futebol - No primeiro torneio de segundas e terceiras categorias disputado entre clubes lisboetas em 1907.


Reprodução de um dos recibos de aluguer do quarto (1.000 réis) por mês onde o «Sport Lisboa» tinha a sua sede. Que diferença entre o modesto quarto de 1904 e os três andares da actual sede na Rua do Jardim do Regedor!



O antigo campo do Benfica, em frente da igreja, onde o clube se instalou depois da fusão entre o «Sport Lisboa» e o «Sport Clube de Benfica» em 13 de Setembro de 1908. O campo pertencia a este último, e foi um dos grandes atractivos para a fusão. Este campo já não existe. Foi expropriado para edificações e o Benfica teve de sair nessa altura, (1912) indo instalar-se em Sete-Rios. A presente gravura reproduz uma fase de jogo por ocasião da visita do primeiro estrangeiro que esteve em Lisboa, o Stade Bordelais, em Maio de 1911


O «team» do «Sport Lisboa» que representou o clube no primeiro jogo com carácter oficial disputado em 17 de Março de 1906. Sentado da esquerda para a direita: Carlos França, António Rosa Rodrigues, Daniel Queiroz dos Santos, Candido Rosa Rodrigues, e Silvestre da Silva. De pé, da esquerda para a direita: António Couto, ALbano dos Santos, Emílio de Carvalho, Manuel Mora, Cosme Damião, Fortunato Levi, e o árbitro inglês. Cosme Damião era suplente e teve de alinhar na falta de José da Cruz Viegas. Este primeiro jogo de competição, em que o Sport Lisboa foi vencido por 1-0, disputou-se contra os ingleses do Lisbon Cricket para a posse do «Bronze Viúva Alexandre Sena», oferecido pelo proprietário da Casa Sena.



O antigo campo das Salésias onde os componentes do «Sport Lisboa» passaram a treinar a partir de 24 de Abril de 1904, quando a Companhia dos Caminhos de Ferro Portugueses os intimou a sair do terreno onde costumavam jogar. Esse terreno ficava por detrás do jardim de Belém, entre a linha férrea de Cascais e o sul da Casa do Duque de Loulé, ou seja em frente do local onde está hoje instalada a Aviação Marítima. Em virtude da ordem de despejo da referida Companhia, os treinos passaram a fazer-se nas Salésias, umas vezes à tarde, outras de manhã, os jogadores tinham de aproveitar o comboio que saia do Cais do Sodré às 5:30, o que obrigava a madrugar...


Um dos fundadores do «Sport Lisboa» e seu primeiro presidente da Direcção, em 1906.
Foi um bom  jogador, tendo feito parte do «onze» da Casa Pia que em 22 de Janeiro de 1897 infligiu a primeira derrota (2-0) as ingleses do Carcavelos Clube. Foi também o primeiro presidente da Liga Portuguesa de Futebol fundada em Agosto de 1908 e que organizou os campeonatos de Lisboa antes da criação da A.F.L. em 23 de Setembro de 1910. Faleceu muito novo, em 23 de Junho de 1910, não podendo ver os resultados da sua obra de devotado propagandista. Na época 1912-1913 a direcção da A.F.L., prestou-lhe  homenagem, instituindo um prémio com o seu nome para ser entregou a um aluno da Casa Pia que mais se distinguisse na prática de jogos desportivos e principalmente futebol. Coube a Candido de Oliveira, nosso camarada de trabalho, a honra de ser o primeiro casapiano a receber o Prémio Januário Barreto.

2 comentários:

  1. Muito interessante, rigoroso, veridico e visualmente perfeito.
    Parabens

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  2. A mais importante entrevista da História do Sport Lisboa e Benfica.
    Obrigado.

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